Quando
nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse:
Vai, Carlos!
ser gauche na vida.
(Poema das sete faces - Carlos Drummond de Andrade)
Se eu fizesse alguma lista dos livros que mais me marcaram
"O estrangeiro", de Albert Camus, certamente estaria na lista. Desde
garoto que minha sensação era de ser um estrangeiro no mundo. Era um ótimo
aluno na escola e só tirava medalha de ouro em "comportamento". Mas,
ao mesmo tempo, era um dos melhores jogadores de futebol do colégio. Em geral,
os bons de bola não eram bons alunos... Na
adolescência, praticava esportes e adorava pegar jacaré na praia, mas
participava ativamente do grêmio e colaborava com o jornal. Em geral, a galera
do "surf" era considerada "alienada" pelos intelectuais que
atuavam no grêmio.
Em
resumo, eu participava de diferentes tribos que raramente se misturavam, o que
me dava a sensação de não pertencer a nenhuma... Daí esta permanente sensação de ser um
estrangeiro, alguém que não era de tribo nenhuma, ou como, diria o Drummond, um
"gauche na vida". Em francês, ser um "esquerdo" quer
dizer ser alguém "diferente" ou "deslocado"...
Na
vida adulta esta sensação de ser um "esquerdo" se tornou crítica com
a pressão para escolher uma profissão. O que fazer? História, matemática,
diplomacia, informática? Acabei fazendo matemática porque era o assunto mais
chato para se estudar sozinho. Era melhor fazer uma faculdade para estudar
junto com outras pessoas e ter professor para tirar dúvida... Ao mesmo tempo, a maturidade me fez ver que,
na verdade, o que me parecia um problema era uma benção. Ter sido sempre um
estrangeiro me permitiu conviver com pessoas muito diversas e me maravilhar com
esta diversidade humana. Se eu tivesse escolhido uma tribo eu não me sentiria
estrangeiro, mas teria uma visão extremamente limitada do mundo.
A
vida deu muitas voltas e acabei virando professor meio que por acaso. E, para
minha surpresa, gostei. Muito. E até hoje, uma das emoções que mais gosto de
sentir é quando, no início de cada semestre, vou conhecer caras e pessoas
novas. Uma vez fui entrevistado no Programa Sem Censura pela Leda Nagle e, no
mesmo programa, estava a Marília Pera. Depois do programa ficamos conversando e
perguntei como ela mantinha a emoção e o brilho nos olhos atuando numa peça de
teatro que ficava mais de um ano em cartaz. E ela me respondeu: "Toda vez
que entro em cena eu procuro me lembrar que eu vou repetir aquele texto pela
centésima vez, mas para quem está ali, no teatro, é a primeira vez. Então,
naquela noite, é a nossa primeira vez juntos. É por isto que eu amo o teatro.
Só ele me permite reviver a cada noite a emoção do primeiro encontro..."
Faz 59 anos que Albert Camus escreveu uma emocionada carta ao seu primeiro
professor, na escola primária, logo após ter recebido o Prêmio Nobel de
Literatura. No meio do turbilhão de emoções e homenagens que esta premiação lhe
trouxe, ele fez questão de agradecer a este desconhecido professor.
19 November 1957Dear Monsieur Germain,
I let the commotion around me these days subside a bit before speaking to you from the bottom of my heart. I have just been given far too great an honor, one I neither sought nor solicited. But when I heard the news, my first thought, after my mother, was of you. Without you, without the affectionate hand you extended to the small poor child that I was, without your teaching and example, none of all this would have happened. I don’t make too much of this sort of honor. But at least it gives me the opportunity to tell you what you have been and still are for me, and to assure you that your efforts, your work, and the generous heart you put into it still live in one of your little schoolboys who, despite the years, has never stopped being your grateful pupil. I embrace you with all my heart.
Albert Camus
Quando alguém me pergunta porque eu sou professor eu
respondo com o que aprendi com o Drummond, a Marília Pera e o Camus. Em
primeiro lugar porque poucas profissões permitem a convivência com esta
maravilhosa diversidade humana tão cara a um "esquerdo" como eu. Em
segundo lugar, fora o teatro que outra profissão permitiria "reviver a
cada semestre a emoção do primeiro encontro"? E por fim, a coisa que mais
me emociona é quando reencontro um ex aluno que me diz o quanto nossos
encontros ajudaram a transformar sua vida... Na
verdade, ninguém transforma a vida de ninguém. Só a própria pessoa pode fazer
isto. O que o professor do Camus fez foi apenas ajudá-lo a encontrar a si
mesmo. Não é pouca coisa, mas o mérito maior é de quem buscou se encontrar. Por
que afinal, como nos lembra Oscar Wilde, o importante é sermos nós mesmos.
Todas as outras personalidades já têm dono...