Os mitos e gurus não existiriam sem seus fanáticos adoradores. Sem o cordão de puxa sacos que seguem seus "líderes" como os ratos seguiam o flautista de Hamelin, eles simplesmente desapareceriam. Estudos recentes, notadamente de uma psicóloga dinamarquesa, confirmam este fato.
Mas antes de falar deste estudo, vamos deixar claro sobre quem estamos falando.
Muita gente se pergunta o que leva as pessoas poderosas a ultrapassarem os limites éticos e legais e cometerem crimes. No nosso imaginário,
quando ouvimos falar de “pessoas poderosas” pensamos logo em políticos,
banqueiros e grandes industriais, mas os grandes poderosos neste início de
século XXI são as empresas de tecnologia.
No Brasil temos a idolatria dos políticos, que nos faz “esquecer” os crimes que cometeram. O que ainda não percebemos é que existe também uma "idolatria da tecnologia" que nos leva a ter a noção equivocada de que pessoas (geralmente homens) de grandes realizações (geralmente em tecnologia) não devem ser criticadas, não estão sujeitas a um código de ética e estão acima da lei. Isso é ruim para a sociedade e para os próprios inovadores pois as restrições e dificuldades são essenciais para que a inovação aconteça. A resistência constrói a força, e um ambiente que recompense o talento e não o clientelismo ou o corporativismo é essencial para um país reduzir desigualdades e promover um progresso econômico e social. Afinal, os seres humanos funcionam mal na ausência de limites, estruturas e desafios.
Mas voltando
a pergunta inicial, a psicóloga Merete Wedell-Wedellsborg, que estuda
executivos poderosos, militares e juízes, descobriu que a ação (ou mais
frequentemente a inação) daqueles que cercam líderes poderosos é fundamental
para seu comportamento antiético. Os puxa-sacos que vicejam em volta destas
pessoas desenvolvem um ambiente viciado que provoca o "entorpecimento” das pessoas em relação ao comportamento de
seus líderes, cujos sucessos passados justificam os abusos do presente.
A autora
mostra como estes transgressores promovem uma cultura que normaliza o anormal. Pessoas poderosas normalmente têm um talento
descomunal para encontrarem uma narrativa não só para justificar seus erros como
para os transformar em acertos…
Mas nada disso seria possível sem o beneplácito da sociedade e das pessoas que os cercam. Desenvolvemos toda uma mitologia em torno de artistas e poderosos cujos excessos são considerados excentricidades e não defeitos. Um político brasileiro falou que “Uma mulher não pode ser submissa ao homem por causa de um prato de comida, ela tem que ser submissa a um parceiro porque ela gosta dele e quer viver junto com ele”, mas seus seguidores e boa parte da intelectualidade brasileira que o venera ignora sua misoginia. São incapazes de dizer o óbvio: “Não, esta é uma opinião machista”. Ponto.
O mito tecnológico
Mas o cordão dos puxa sacos aumentou, como na
marchinha de carnaval. Agora não são só os políticos. Desde Bill
Gates e Steve Jobs que aceitamos o discurso de que um executivo de tecnologia é
um gênio. Os fanáticos seguidores da Apple, que fazem fila para comprar um novo
Iphone (que a cada ano muda o formato do carregador para poder vender mais) são um exemplo disto. Qualquer crítica ao líder ou ao produto, por mais justificada que seja, parece
uma crítica aos próprios seguidores.
Tristan Harris e o Center for Humane Technology têm chamado a atenção para os perigos gerados pela tecnologia. Depois que Elon Musk anunciou sua intenção de renegar sua obrigação contratual de comprar o Twitter por US$ 44 bilhões, o que era para mim uma suposição se tornou uma certeza: considero Musk a figura de proa de uma cultura empresarial que usa a tecnologia para explorar a fraqueza humana em vez de capacitar pessoas. Ele é o retrato vivo de uma cultura de gerenciamento tão egocêntrica que não respeita as pessoas que usam seus produtos e serviços, que não respeita as regras e as leis.
Outros exemplos de executivos deste tipo são Travis Kalanick, que construiu o Uber violando as leis de transporte e trabalho, e Zuckerberg, que mantém sem controle social seu negócio perigoso e destrutivo, que monetiza a depressão, o isolamento e a raiva das pessoas.
Como todo mito ou guru, Elon, Zuckerberg,Travis e seus puxa sacos precisam das críticas dos “infiéis” para justificar sua cultura agressiva. Na caso de Elon Musk, seu amor declarado pela liberdade de expressão não tem nada a ver com direitos civis, engajamento cívico ou comprometimento com a democracia. Suas razões para abandonar o acordo com o Twitter foram descritas por observadores financeiros como "risíveis", "absurdas" e "estúpidas". Elon não iria “consertar” o Twitter assim como Trump sabia que não iria forçar o México a pagar pelo muro. Toda esta retórica era só um meio para mobilizar sua tropa de bajuladores.
Mas há uma lição para todos nós que estamos indignados com a falta de indignação. Dar palco para Elon ou para um político que tem seguidores fanáticos nas mídias digitais só alimenta aqueles que se sentem à vontade com seu guru de estimação. Devemos parar de dar trela a estas pessoas não apenas na internet. Dentro das universidades, que supostamente deveria ser um ambiente onde se analisaria este e outros fenômenos de maneira aberta e crítica, encontramos este mesmo ambiente fechado e intolerante das mídias digitais. Na prática é o mesmo tipo de intolerância tribal que serve aos interesses dos poderosos, não dos impotentes, pois reúne “militantes fanáticos” e não pesquisadores críticos. A intolerância deveria ser o alvo do progresso, não sua ferramenta.
A tecnologia e a prosperidade econômica que ela gerou são irreversíveis. O número de pessoas que a usa e dela se beneficia não para de crescer. A profusão de gritos e discursos inflamados nas mídias digitais, 24 horas por dia, 7 dias por semana, tornou a torre da idolatria mais alta. Os algoritmos que nos fecham em bolhas, onde todas as mensagens que recebemos e vemos são de opiniões parecidas com as nossas tornou a animosidade maior ainda.
O que fazer?
Tudo indica que o tribunal de Delaware, onde Musk vai
ser julgado, vai puni-lo exemplarmente. O valor das ações do Twitter, sem Musk,
é de cerca de US$ 20 por ação. Pelo contrato que assinou com o Twitter ele deve
pagar U$ 54,20 por ação. O tribunal de lá costuma julgar sem se deixar influenciar
pela balbúrdia das mídias digitais e de seus fanáticos puxa sacos. O homem mais rico do mundo vai ter que pagar alguns bilhões de dólares para o Twitter.
A punição de Elon Musk vai contribuir para quebrar o
mito de que a tecnologia e seus executivos podem tudo, mas isto é muito pouco.
A sociedade precisa se conscientizar dos males que a idolatria, qualquer uma (política,
religiosa, tecnológica) provoca. Até porque a idolatria e o fanatismo são uma
doença que nos faz muito mal.
Em psicologia, os fanáticos são descritos como
indivíduos excessivamente agressivos, preconceituosos, que possuem ódio, estreiteza
mental e extrema credulidade quanto a um determinado "sistema" ou
pessoa. A medicina já comprovou que todos estes sentimentos aumentam em nosso
organismo a produção de cortisol, o hormônio do estresse, que além de
prejudicar o bem-estar emocional, ainda atrapalha o sono, resulta em aumento de
peso e até mesmo problemas cardíacos.
Precisamos criar um novo caminho para o desenvolvimento
que:
- seja centrado em valores humanos e projetado com consciência de que a
tecnologia nunca é neutra e é inevitavelmente moldada pelo ambiente
socioeconômico circundante;
- seja sensível à natureza humana e não explore nossas vulnerabilidades
fisiológicas e psicológicas;
- reduza as desigualdades, a ganância e o ódio;
- ajude a construir uma realidade compartilhada em vez de nos dividir em
bolhas, com realidades fragmentadas.
Tudo isto parece utópico, mas a alternativa é um caminho que nos levará para o totalitarismo e/ou a barbárie.
Um outro mundo é possível.
Com menos puxa sacos e idolatria e com uma tecnologia
mais humana.
Bora?
PS: para saber mais sobre estes assuntos, acompanhe este blog e o site do Crie (http://crie.ufrj.br)