quarta-feira, 26 de julho de 2017

A nova revolução francesa

Durante mais de dois séculos os franceses fizeram a direita e a esquerda se revezar no poder. Este ano eles viraram esta página da sua história. Pela primeira vez na história da República Francesa a esquerda E a direita foram fragorosamente derrotadas nas urnas.



Foi uma tsunami.

A direita sofreu a maior derrota eleitoral da sua história e deverá ter apenas 70 deputados. A extrema direita (Front Nacional, de Marine Le Pen) deverá ter apenas 10 deputados.
Já a esquerda foi dizimada. O PS (partido que estava no poder) teve menos de 10% dos votos e não deverá fazer nem 40 deputados. A "nova esquerda", a France Insoumise teve menos votos que o Front Nacional e mesmo aliada ao PCF (Partido Comunista Francês) fará menos de 15 deputados...
O grupo político vencedor foi France en Marche, do presidente Macron, que rejeita explicitamente qualquer enquadramento de "direita" ou "esquerda". Ele deverá ter maioria absoluta no parlamento, com mais de 400 deputados, sendo que a maioria deles nunca tinha participado antes da política.
É uma revolução que deixa o status quo político, mediático e intelectual de cabelo em pé.
Foi ridículo ver os políticos dos partidos de direita e de esquerda (inclusive os da "nova" esquerda, como a France Insoumise - o PSOL francês) tentando justificar sua derrota acachapante. Só conseguiram repetir os chavões e blá-blá-blá de sempre, que cansou os eleitores.
Já os jornalistas e comentaristas políticos estão completamente desorientados. Sem saber como explicar esta enorme demonstração de insatisfação com a política tradicional, se limitam a repetir o óbvio: os franceses estão de saco cheio dos políticos e da política. E justificam esta afirmação com a taxa recorde de abstenção desta eleição: 51,2% dos franceses simplesmente não apareceram para votar!
Por fim, os acadêmicos. Apesar de estarem desorientados, como os jornalistas, eles não podem dar o braço a torcer e dizer, simplesmente, que não estão entendendo nada. Preferem, do alto da sua arrogância, dizer que o povo francês está "flertando com o caos", "que esta rejeição da política está abrindo as portas para a extrema direita" ou ainda, "que a França en Marche é um projeto neo liberal sem dizer o nome". Em resumo, continuam tentando explicar a realidade com as suas velhas categorias e conceitos baseados numa visão de mundo que só consegue enxergar dois posições: a direita e a esquerda.
Minha percepção é completamente diferente. Os franceses não estão "cansados da política". Eles estão cansados DESTA política, velha, tradicional e ultrapassada. E acham que o parlamento nao representa mais a sociedade. Daí esta taxa de abstenção recorde (na França a eleição não é obrigatória). Não estamos vivendo "o fim do mundo", mas o fim de UM determinado mundo...
O resultado das eleições francesas é mais um sinal evidente de uma revolução em curso: o advento da sociedade do conhecimento, em rede e o fim da hegemonia do pensamento cartesiano e dual.
Do meu ponto de vista, o pensamento binário não consegue mais dar conta da diversidade e complexidade da vida política, econômica e social. Basta pensar em conceitos diversos como família, sexualidade ou economia e politica para se dar conta de que a era do pensamento binário acabou.
Uma família dos séculos XIX e XX tinha uma estrutura bem conhecida: pai, mãe, tios, avós... Olhe à sua volta hoje. Pessoas que se casam várias vezes, que não se casam e moram juntas, ou vivem separados, ou nunca se casam... Dentro da lógica cartesiana isto é uma verdadeira "zona". Dentro do pensamento complexo isto é só a expressão da variedade humana.
A sexualidade do século XXI não tem absolutamente NADA a ver com a sexualidade dos séculos XIX e XX. A mulher do século XXI é outra mulher. O homem também. E apareceram várias outras categorias que não se sentem representadas por esta classificação (homem-mulher). Mais uma vez, dentro do pensamento binário isto parece uma "bagunça" ou o "fim do mundo". Dentro da lógica complexa é apenas uma expressão da diversidade humana.
Na economia e na política, que mudam menos rápido que os costumes e práticas humanas, o esgotamento do pensamento binário é cada vez mais evidente. Existe uma nova economia, intensiva em tecnologia e conhecimento, que está superando a velha economia baseada em mão de obra e combustíveis fósseis. E na política é cada vez mais claro que as pessoas estão cansadas desta velha divisão direita X esquerda e desejam uma nova política, mesmo que ainda não saibam exatamente qual.
As manifestações de junho de 2013 e pelo impeachment de Dilma, no Brasil, e a eleição francesa são sinais deste novo tempo que surge. Claro que o novo ainda está sendo construído. Ele ainda é pouco claro, contém velhos traços do passado. O movimento de Macron não é o "novo que queremos". Ele é cheio de imperfeições e vícios, naturais em todo processo de transformação. Podemos nos envolver neste processo ou ficar de fora, observando ou criticando. Ficar de fora observando é lavar as mãos e deixar que o novo mundo seja construído pelos outros. Ficar de fora apontando seus defeitos é uma atitude arrogante e inútil. Arrogante porque pressupõe que quem critica sabe exatamente tudo o que deve ser feito. E inútil, porque o futuro não está escrito nas estrelas, mas é construído no dia a dia dos embates diários que temos na vida.
Bora construir o novo mundo e o Brasil do século XXI?