quinta-feira, 16 de novembro de 2017

No intenso agora (e a construção do futuro...)

“Para ser grande, sê inteiro...
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes”.
Fernando Pessoa


No início de 1999 assisti a minissérie Chiquinha Gonzaga, de Lauro César Muniz. Ela foi uma mulher revolucionária, que no final do século XIX, quando as mulheres eram consideradas um cidadão de segunda classe que não podia nem trabalhar e nem votar, ousou fazer o que gostava (compor e viver de música) e amar intensa e verdadeiramente. Numa atitude que chocou a sociedade conservadora de sua época decidiu abandonar o marido que não amava para seguir seu coração. Mais tarde, aos 52 anos de idade, já consagrada, Chiquinha conheceu aquele que iria se tornar seu companheiro até o final da vida, o jovem português João Batista Gonzaga, de 16 anos. Numa das cenas que mais me marcaram na minissérie, Chiquinha fala para um namorado: “Quem foi amada como eu fui, não pode se contentar com as migalhas de amor que você quer me dar...



A poesia do Fernando Pessoa e esta frase da Chiquinha Gonzaga me vieram à cabeça depois de ver o filme “No intenso agora”, de João Moreira Salles. O filme recupera imagens históricas e de arquivo pessoais dos intensos acontecimentos da década de 1960: a revolta estudantil em maio de 1968 em Paris, a Primavera de Praga (a invasão soviética na Tchecoslováquia, em 1968) e a China maoísta de 1966 pelo olhar da sua mãe, que fez uma visita à China, na época.

O filme nos faz pensar sobre vários assuntos. Num trecho, por exemplo, João Moreira Salles analisa como os mortos são utilizados politicamente. O foco é 1968, e são exibidas imagens de enterros em Praga, Paris e Rio de Janeiro, cada um com seu mártir. Em Praga, um estudante de 20 anos se suicidou colocando fogo no próprio corpo para protestar contra a invasão soviética e a apatia do povo tcheco. Seu enterro foi a maior manifestação já ocorrida naquele país e as pessoas, além de protestar, estavam visivelmente emocionadas, lamentando sua morte. Já no enterro de Edson Luís, no Rio e de um operário, em Paris, só houve protesto. A morte foi um estopim para o protesto. Ninguém chorou...

Mas a reflexão mais importante é a que aparece no título do filme: qual o papel destes momentos intensos na transformação das pessoas e da sociedade? João Moreira Salles sugere que a paixão e a intensidade nas quais estes momentos foram vividos por quem deles participou são só uma centelha sem consequências.

De fato, meses depois destes acontecimentos eletrizantes a vida voltou ao seu normal. A “ordem” foi restabelecida no Rio, Praga e Paris e todos voltaram a viver suas vidas exatamente como antes mesmo que, para alguns, esta volta à “normalidade” tenha se revelado impossível. O diretor faz uma referência toda especial a vários personagens chave das revoltas de 68 que se suicidaram logo depois. Ele sugere, provavelmente numa busca de entender o suicídio de sua própria mãe (homenageada no filme), que a miséria de uma vida cotidiana e banal se tornou insuportável para quem viveu momentos tão intensos e arrebatadores.

O filme é um documentário político, mas como escreve Pablo Ortellado, ele também sugere que o contraste entre essas explosões revolucionárias e a vida “normal” que segue depois é o mesmo entre as paixões arrebatadoras (e fugazes) e o amor banal, morno e cotidiano. E que nosso desafio “é aprender a viver na pequena miséria cotidiana, tanto aquela do amor, quanto aquela da política”.

Mas, continua Pablo, “talvez devamos pensar inversamente: que a memória da paixão é o motor que alimenta e orienta o amor cotidiano e, por analogia, que os bonitos surtos de rebelião oferecem a direção para o futuro, mesmo depois que os acontecimentos ficaram distantes no tempo. Maio de 1968, na França, assim como junho de 2013, no Brasil, permanecem eventos insondáveis, inexplicáveis. Lá, o período ainda é chamado de "os acontecimentos" e, aqui, simplesmente de "as manifestações". Ninguém sabe dizer ao certo por que aconteceram, nem consegue reduzir seu significado a uma explicação simples. Mas foram dias tão intensos e tão carregados de esperança e sentido que, passados anos, sua luz consegue ainda iluminar o futuro."

Nós escutamos o barulho do carvalho que cai, mas não escutamos o barulho da floresta que cresce (Jean-Yves Leloup)

Hoje fala-se muito de nossa aparente apatia e desinteresse, mas o mais importante é aquilo que não se ouve ou vê; é preciso prestar atenção às sementes de consciência que foram plantadas em junho de 2013 e nas manifestações que se seguiram.  Assim como aquela(e) que amou intensa e verdadeiramente não suportaria viver um amor burocrático e formal, uma sociedade que experimentou o gosto da democracia participativa não tolerará o fim da Lava Jato e o retorno dos mesmos políticos em 2018.


A esperança não vai morrer. Junho de 2013 ainda vai iluminar o nosso futuro e a construção de uma nova sociedade, mais democrática e em rede. 

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