sábado, 23 de dezembro de 2017

O que importa não se mede com fita métrica

"Você não é de bugre?.

Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas.
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os araticuns maduros."  Manoel de Barros



Cresci com uma enorme vocação para ir contra o senso comum, as proibições, e ser do contra... Sempre achei que a poesia do Drummond que diz "quando nasci, um anjo torto me disse: vai Carlos, ser gauche na vida..." se aplicava perfeitamente a mim! Devo ter um anjo ou uma Iemanjá torta me dizendo sempre para seguir uns caminhos diferentes do que a maioria segue...
Quando todos pensavam em fazer vestibular pra engenharia, direito ou medicina, eu queria fazer matemática ou história. Trabalhei cinco anos no mercado financeiro e quando todos diziam para aproveitar, resolvi jogar tudo para o alto e ir fazer um doutorado na França.
Esta vocação de ser "gauche" sempre me fez pensar nas proibições como uma imposição externa necessariamente ruim, com o único propósito de nos limitar, controlar e diminuir.. Sempre achei que o homem só pudesse se desenvolver livre das amarras legais e morais. Hoje, graças a alguns amigos psicólogos e psicanalistas, acho que sem as proibições não teríamos nossa consciência de humanos. Não somos movidos apenas pelos instintos, como os animais. Ao nos controlarmos e nos impormos certos limites, ao suspender provisoriamente a satisfação dos desejos imediatos conseguimos ultrapassar a condição de animais e nos desenvolver como seres humanos. Ao mesmo tempo que estes limites contém, organizam, definem, eles também nos lançam para o ilimitado, nos fazem querer ultrapassar as barreiras, buscar ir mais além.

Mas se nossa vida fosse completamente regulada por proibições e leis perderíamos a espontaneidade e a alegria de viver. O excesso e a transgressão é que fazem que não possamos ser reduzidos a autômatos, a seres-objetos, sem vida. Tem um francês (Georges Bataille) que diz que o erotismo é a fusão dos corpos, a supressão dos limites, a suspensão do isolamento e da solidão. Mas não é somente a sexualidade que produz erotismo. O amor pode ser erótico (porque mesmo sem a fusão de corpos promove o encontro entre dois seres que buscam ir além de si mesmos); a arte e a poesia podem ser eróticas, na medida que promovem a transgressão das regras, a viagem pela imaginação. O que marca o erotismo, segundo o Bataille, é a relação do homem com a vida, é a possibilidade de vivermos a vida sem limites, mesmo que isto possa durar apenas alguns segundos, como num orgasmo, na satisfação de termos feito um trabalho bem feito ou na simples leitura de um poema.

Em resumo, talvez a grande contradição que vivemos em nosso processo de humanização é que precisamos de limites e regras para nos organizarmos, mas ao mesmo tempo precisamos suspender (mesmo que provisoriamente) estes limites. Precisamos exercer o excesso de vida que habita nossos corpos. Precisamos dar vazão à força e aos "vulcões" que nos habitam! Precisamos caminhar pelos desvios, por aqueles caminhos que nos farão ter surpresas e provar os araticuns maduros... E isto não é necessariamente contraditório com caminhar pelos caminhos já pavimentados, pelos lugares que já conhecemos e onde teremos menos surpresas. A escolha de um não anula a possibilidade de caminhar pelo outro.
Trata-se de um falso paradoxo.
Como também é falsamente paradoxal querermos enquadrar e rotular as pessoas, sem perceber que somos seres complexos. Eu, por exemplo, me considero um cara tímido e discreto, que (em geral) age calmamente, que gosta de ficar sozinho ou com pessoas muito próximas e curte o silêncio. Ao mesmo tempo, subo no banquinho pra falar quando vejo uma injustiça, me emociono, não suporto a rotina, e quero (quase sempre) mudar o status quo. Aos poucos vou entendendo que não sou uma coisa OU outra, mas as duas coisas. E que isto não é necessariamente contraditório ou antagônico mas, ao contrario, pode ser sinérgico. Os momentos de silêncio e reflexão me ajudam a perceber melhor o que são e pensam as pessoas e me ajudam a saber o que dizer em cima do banquinho... E tentar transformar a realidade me traz novas questões para pensar...
O século XX, a sociedade industrial e o modo de pensar dual e cartesiano nos acostumaram com a falsa ideia de que existe uma contradição entre teoria e prática, analisar e fazer, pensar e sentir. Este mundo industrial e este modo de pensar binário estão ficando pra trás. Os araticuns estão maduros. É hora de provar uma nova forma de viver, mais sistêmica, onde não tenhamos medo de afirmar a complexidade e a transitoriedade da vida e das relações humanas.
"Me procurei a vida toda e não me achei. Pelo que, fui salvo" (Manoel de Barros)

Estou convencido que só podemos dar nosso depoimento ao mundo através do exemplo concreto. Porque nenhuma mudança se dá só no discurso, ela exige um contato real, de experiência vivida a partir da emoção mais profunda. Só conseguimos sensibilizar os outros a partir dessa verdade vivida. E o amor, o dia a dia das organizações e a vida são feita de sucessos, alegrias, mas também de dores, cicatrizes que nos marcam profundamente, de coisas que a gente não controla, de um mistério que envolve a vida e que nem sempre pode ser desvendado. Frequentemente queremos apagar o que vivemos para começar de novo. Ano novo, vida nova!

Doce ilusão! A arte de viver talvez seja aprender a conviver com nossas dores. Ao invés de tentar negar ou colocar nossos problemas para baixo do tapete, deveríamos tentar incorporar, absorver, assumir como nossa esta experiência. Todos nós achamos que vivemos para chegar no paraíso. Ou, pelo menos, para chegar numa vida agradável e estável. Mas esta frase do Manuel de Barros nunca mais me saiu da cabeça, porque ela vai de encontro a esta visão: "Me procurei a vida inteira e não me achei. Pelo que fui salvo". Acho que o que Manuel de Barros está falando é da impermanência das coisas, do fato de que no momento que chegamos a algum lugar já estamos buscando outra coisa, já somos outra pessoa. Nunca voltamos ao mesmo lugar, às mesmas sensações. Nunca mais voltaremos a ser crianças. A sentir o que sentimos numa determinada situação. E isto não tem nada de ruim, ao contrário. É o sinal que estamos vivos, prontos para viver mais situações e emoções que podem ser tão ou mais intensas que aquelas que não queremos abandonar. E isto não significa que devemos esquecê-las. Mas incorporá-las. Conviver com elas.

Enfim, que neste momento de Natal e de fim de ano, onde todos fazem seus balanços de vida e se preparam para nascer de novo, nos mantenhamos na busca de nós mesmos. 

Se há uma "salvação", deve ser esta...



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