sábado, 12 de dezembro de 2015

A alegria é a prova dos nove...

"Pois santo Agostinho, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do "uti" (ele escrevia em latim ) e a ordem do "frui". "Uti" significa o que é útil, utilizável, utensílio. Usar uma coisa é utilizá-la para obter uma outra coisa. "Frui" significa fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma" (A caixa de brinquedos - Rubem Alves)


Quando eu era criança adorava jogar futebol, bola de gude, xadrez e futebol de botão. Sou eternamente grato ao futebol porque ele me impediu de sofrer bullying na escola. Eu era um ótimo aluno e muito tímido, um caso clássico do que se chamava na época um aluno CDF... Qualquer coisa que falassem de mim eu logo ficava vermelho e começava a transpirar. Mas ao contrário dos outros alunos eu jogava bola muito bem. Todos me queriam no time deles e aí me poupavam das suas gozações. Mais tarde, quando me separei, o futebol e a paixão em comum pelo Fluminense me aproximaram ainda mais da minha filha. Íamos até aos treinos nas Laranjeiras juntos... 

Mas o futebol, as bolas de gude, o xadrez e o futebol de botão são inúteis. Uma coisa útil é um utensílio, uma ferramenta, uma coisa que pode ser usada para aumentar nossa capacidade de agir no mundo. Estas coisas que eu gostava de fazer eram inúteis. Como nos ensina Santo Agostinho e Rubem Alves, elas só servem para serem gozadas, desfrutadas.




Sempre me perguntei por que, então, gastamos tanto tempo com elas? 

Foi aí que li este texto do Rubem Alves, cujo resumo eu apresento aqui. Clique aqui para ler o texto na íntegra. Vale a pena! 

"... Faz tempo, preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos aposentados. "Inúteis" —comecei a minha fala solenemente. "Então os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis..." Foi um pandemônio. Ficaram bravos, me interromperam e trataram de apresentar as provas de que ainda eram úteis. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas.

Minha provocação dera o resultado esperado. Comecei, mansamente, a argumentar. "Então vocês encontram sentido para suas vidas na sua utilidade. Vocês são ferramentas. Não serão jogados no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Uma música do Tom Jobim é inútil. Não há o que fazer com ela. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom... Papel higiênico é muito útil. Não é preciso explicar. Mas um poema da Cecília Meireles é inútil. Não é ferramenta. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à do poema da Cecília..." E assim fui acrescentando exemplos. De repente os seus rostos se modificaram e compreenderam... A vida não se justifica pela utilidade, mas pelo prazer e pela alegria —moradores da ordem da fruição. Por isso Oswald de Andrade, no "Manifesto Antropofágico", repetiu várias vezes: "A alegria é a prova dos nove, a alegria é a prova dos nove...".

E foi precisamente isso o que disse santo Agostinho. As coisas da caixa de ferramentas, do poder, são meios de vida, necessários para a sobrevivência (saúde é uma das coisas que moram na caixa de ferramentas. Saúde é poder. Mas há muitas pessoas que gozam de perfeita saúde física e, a despeito disso, se matam de tédio). As ferramentas não nos dão razões para viver; são chaves para a caixa dos brinquedos".

Futebol, bola de gude, xadrez e futebol de botão, estas coisas não serviram para me levar a lugar nenhum. Porque quem está brincando ou desfrutando já chegou... Para muitos o processo de aprendizado deve ser uma tortura, uma obrigação. O meu professor de Biologia, Claudio Mário, adorava ser percebido como um carrasco. Suas provas eram uma verdadeira tortura. Para muitas pessoas isto funciona. Serve como um desafio que os motiva a estudar e acabam aprendendo e até mesmo gostando do que estudaram. Para mim este modelo não funciona. Prefiro que o processo de aprendizado aconteça com prazer e alegria. 

Como nos lembra Rubem Alves, "os saberes que se ensinam em nossas escolas são ferramentas? Tornam os alunos mais competentes para executar as tarefas práticas do cotidiano? E eles, alunos, aprendem a ver os objetos do mundo como se fossem brinquedos? Têm mais alegria? Infelizmente, não há avaliações de múltipla escolha para medir alegria"... mas, eu acrescentaria, são estes momentos que levamos para a vida toda. Eu não sei nada de biologia...

5 comentários:

  1. Que gostoso receber e ler este artigo, simplicidade e nobreza nas palavras. De certa forma, libertadoras...

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  2. Que gostoso receber e ler este artigo, simplicidade e nobreza nas palavras. De certa forma, libertadoras...

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    1. Muito obrigado Jorge. Visite o site do Rubem Alves. Ele tem textos maravilhosos!

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  3. Muito bom. Deve ser por isso que no Butão trocaram o PNB - Produto Nacional Bruto por FNB - Felicidade Nacional Bruta. As políticas são escolhidas pelo critério da felicidade e bem estar da população e não pelo que é útil...para o lucro e o mercado.

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